Diretor: Duke Johnson, Charlie Kaufman
Estúdio: Snoot Entertainment / Starburns Industries
País: EUA
Episódios: 1
Duração: 90 min
Gênero: Comédia / Drama
Há algo de muito especial sobre Anomalisa: ele só existe graças ao financiamento coletivo. A grana foi obtida pelo Kickstarter, de modo que quem bancou o filme foram os fãs de stop-motion ou do roteirista Charlie Kaufman (Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e Quero Ser John Malkovich). Os tempos são outros mesmo.
O financiamento foi um sucesso e o filme teve 90 minutos, mais do dobro da duração prevista. Ganhou vários prêmios e está concorrendo ao Oscar de animação de 2016 (um prêmio não muito justo com quem compete, para ser sincero, mas que traz bastante visibilidade). O financiamento foi muito simples e sem detalhes. A obra inteira foi resumida em uma única frase:
Ou, numa tradução livre, um homem calejado pela trivialidade de sua vida experimenta algo além do comum. É um resumo perfeito para a obra.
Em Anomalisa nós conhecemos Michael Stone, um senhor de meia idade, casado, que escreve livros para quem lida com atendimento ao público (hotel, telemarketing, etc). Ele é um homem de sucesso, embora sucesso seja sempre um termo relativo. Em uma viagem como palestrante ele conhece Lisa, uma mulher diferente das pessoas que ele sempre encontra.
Anomalisa ataca uma contradição séria da sociedade: nós queremos uma vida estável e tranquila e, ao mesmo tempo, queremos aventura. Queremos um emprego estável e alguém nos esperando em casa, ao mesmo tempo que queremos surpresas diárias e casos tórridos. O problema é que dificilmente ambos os estilos de vida são compatíveis. Há sempre a opção de usar drogas (lícitas ou não) para abafar esta vontade. Um método muito popular de satisfazer nossa ânsia por emoções fortes é com ficção. Seja com livros, séries, filmes, jogos ou quadrinhos. Nós experimentamos as aventuras de personagens e isso nos faz sentir bem.
Animações são uma mídia, não um estilo. Dá para contar qualquer tipo de história com elas. Mas é inegável que as mais famosas para o grande público são as voltadas para crianças. Usar uma animação para contar uma história de (e para) adultos gera choque. Você usa uma mídia conhecida por suas histórias fantásticas e empolgantes e conta uma história ordinária.
Outro choque é usar expressões, corpos e movimentos mundanos em uma animação. Quando se assiste algo, o diretor sempre está tentando passar uma mensagem. Se os personagens precisam passar uma sensação de força e poder, nós os vemos de baixo para cima. Mesmo o jeito de andar ou de mexer no cabelo é escolhido para passar uma sensação. Isso com pessoas reais. Por animações não estarem presas a realidade há ainda mais meios de exaltar o que se quer mostrar. Formato do corpo, cores, expressões exageradas. Usar personagens de meia idade como protagonistas (e que parecem com pessoas de meia idade comuns e não são atletas/modelos), que não agem como se uma câmera os estivesse filmando, passa uma naturalidade que parece estranha. As expressões faciais escolhidas não são as que tornam os atores e atrizes (no caso bonecos) mais bonitos e empáticos. São as que mais revelam o que estão sentindo.
Há mais um detalhe que faz da escolha de stop-motion algo perfeito para este filme: os movimentos cadenciados e hesitantes. A falta de fluidez dos stop-motions combina completamente com o jeito meio hesitante de agir e se expressar dos personagens (e de nós mesmos, nas mesmas situações). Há sempre um medo de errar ao agir ou falar algo que se deseja mas pode ser indevido. E, ao mesmo tempo, o risco é fundamental às aventuras. Se você sempre vencesse numa máquina de cassino, você ficaria rico, mas não viciado.
O uso de vozes é muito interessante também, mas contar seria estragar um dos detalhes interessantes de Anomalisa. Uma escolha de um bom dublador é fundamental para a qualidade de uma animação. Quem vê filmes dublados sabe o inferno que é ver filmes serem estragados pelas vozes sem emoção de apresentadores de TV ou modelos. Anomalisa não apenas usa bons dubladores – ele vai além. A dublagem faz parte da história de maneira mais íntima.
Anomalisa é incrível e perfeito no que se propõe. O problema é que o que ele se propõe é ser um filme íntimo sobre algumas poucas pessoas. E ver pessoas em momentos realmente vulneráveis não é algo que estamos realmente acostumados em obras de ficção. Há problemas profundos que podem causar desconforto, seja por imaginar eles em outras pessoas ou por reconhecer estes problemas em nós mesmos. É raro ver algo que me dê uma sensação tão forte de realidade. É como se eu pudesse ver Michael Stone ou Lisa andando por aí. São personagens muito verossímeis. A vida deles começou antes do filme e continua mesmo depois que o filme acaba. E isto é, na mais mundana das aventuras, mágico.
Heider Carlos