terça-feira, 22 de novembro de 2016

Hourou Musuko (TV)

OBS: Resenha publicada originalmente no Animehaus em 24/01/2012

Alternativos: Wandering Son
Ano: 2011
Diretor: Ei Aoki
Estúdio: AIC
País: Japão
Episódios: 11
Duração: 23 min
Gênero: Drama / Romance



Existem na natureza certos instantes tão sensíveis e delicados, que um simples soprar é responsável por desmantelá-los. Uma gota de orvalho teimando a cair numa manhã de sol, o canto de um pássaro na metrópole, pequenas plantas insistindo em nascer entre lajotas e vãos de calçada, ou uma aranha fiando pacientemente uma engenhosa e frágil teia em algum canto... Essa sensibilidade que envolve as coisas mundanas parece também envolver a obra de arte considerada audaciosa. Andando sobre um terreno escorregadio e inóspito com leveza e graça, o artista esquiva-se de deslizes que podem ser fatais, onde uma falta de sutileza pode manchar todo um trabalho, como o soprar que desmancha o vapor quente que emana do asfalto após uma chuva de verão.

Inserido justamente numa cultura escolar específica, "Hourou Musuko" (Filho desviado ou Filho desorientado, se me permitem os dois trocadilhos oportunos¹) consegue ir muito além de um debate sobre as relações homoafetivas, ou de uma propaganda de conscientização. O anime conta a história de Nitori, um menino afeminado e sensível que gosta de vestir roupas femininas e que acaba de entrar no ginásio. Tendo uma amizade rompida com duas amigas por uma briga, onde um ciclo de amores não correspondidos se fez, Nitori procura se aproximar delas novamente e, no decorrer dos 11 episódios, enfrenta diversos problemas típicos da cultura escolar do período ginasial, principalmente do começo da puberdade.

Com uma delicadeza audaciosa, o anime "Hourou Musuko" é essa obra de arte destemida que se aventura num terreno inóspito e perigoso, podendo encontrar armadilhas que poderiam ser fatais. Só que, paradoxalmente aliada a sua graciosidade de bailarina, esta obra consegue se desviar dos mais terríveis perigos. Ou seja, quando se trata de temas complexos ou talvez polêmicos, principalmente inserido numa cultura totalmente conservadora como a japonesa, onde ela tem seus prós e contras, deve-se ter certa astúcia e cuidado.

A história, baseada no mangá homônimo, continua sendo publicada até hoje sob a autoria de Takako Shimura, mesma autora de outro grande mangá de temática semelhante que também se tornou animação, o famoso "Aoi Hana"². Fazendo jus a seu estilo, Shimura sempre tendeu a temáticas de gênero como a transexualidade e a homossexualidade. Com "Hourou Musuko" não foi diferente. Infelizmente não tive a oportunidade de ter contato com o mangá, mas com certeza, não só sua história, mas também a mão do diretor Ei Aoki, que apesar de não ter uma grande bagagem, foram responsáveis pela sensibilidade e pela grande qualidade dessa animação. Assim também como o trabalho de roteiro de Mari Okada: apesar de muitos não chegarem a comentar o ofício, em "Hourou Musuko" pode-se ver com clareza a qualidade das falas e diálogos. Logicamente, é um roteiro adaptado, mas é inegável que a adaptação foi responsável pela qualidade do texto e pela grande sutileza que permeia todo o anime.

Com um ritmo lento e poético, o anime, talvez para muitos, possa parecer chato ou tedioso. Mas com um enredo muito bem construído, com uma edição muito bem feita e com personagens extremamente complexos e profundos, "Hourou Musuko" deixa no chinelo até os animes mais rebuscados. O que é impressionante é a inteligência de sua construção. Sem uma grande história mirabolante, mas bem bem pé-no-chão, "Hourou Musuko" consegue ser profundo e delicado, sem ser superficial.


Para abrir aqui um enorme parêntese, existe, na linguagem publicitária, mas principalmente nas engrenagens da indústria cultural, um conceito chamado “target”, ou melhor, “público-alvo”. Sabe-se que, ao se criar certo produto, deve-se sempre visar esses “targets”. Por exemplo, devido à grande popularização do movimento gay, surgiu no mercado um novo perfil de consumidor: os gays. Assim, após ser percebido isso, diversos filmes, músicas, revistas e livros surgem no mercado a fim de apanhar esses consumidores em potencial. Mas por que me parece pertinente esse assunto? Porque se pegarmos qualquer anime do mercado, certamente veremos que alguns deles têm um público determinado. Imaginemos o caso dos animes "Naruto", "Pokemon", "Dragon Ball", todos eles tentavam agarrar uma grande fatia dos consumidores: crianças e adolescentes do sexo masculino. Ou, por exemplo, o anime "Sakura Card Captors": crianças e adolescentes do sexo feminino. Assim, qualquer um pode concluir que o anime "Hourou Musuko", portanto, tenta agora trazer o público gay para os animes, correto? De forma alguma.

Ao que me parece, uma obra-prima é uma obra-prima. "Hourou Musuko" já se diferencia justamente aí de qualquer produto cultural massificado. Mas mais ainda, será mesmo que seria possível enquadrá-lo neste “target”? De fato, não... Da mesma forma que seria de extrema tolice acreditar que os clássicos "A Viagem de Chihiro" ou "O Castelo Animado" sejam estritamente para o público infantil, mesmo que talvez apareça na locadora ou na loja de DVDs na estante infantil. Assim também os livros "Alice do País das Maravilhas", "As Viagens de Gulliver", ou o romance "Frankenstein", e mais inúmeros exemplos que fogem à regra barbaramente. "Hourou Musuko" também vai muito além de um anime gay.


Talvez alguns encontrem semelhanças, como eu, com o cuidado na elaboração dos personagens, como vemos no famosíssimo anime "Neon Genesis Evangelion". Uma das maiores animações japonesas que já se viu, o anime de 1997 mesclou os “mechas” a uma história complexa, com personagens profundos e dignos de análise freudiana. Mas quantas vezes não se constatou que “menos é mais”, ou melhor, que nem sempre a complexidade ou o altíssimo hermetismo revelam uma grande obra-prima. A verdade é que "Hourou Musuko", com uma narração totalmente simples e com diálogos aparentemente irrelevantes e sutis, consegue alcançar a profundidade dos personagens de "Evangelion" na ponta dos pés.

Não ressalto "Evangelion" à toa. O protagonista da série, como Nitori, me parece ser um dos maiores personagens já criados, não só no âmbito dos animes, mas também do cinema ou da literatura. Certamente muitos discordam e discordarão veementemente de mim, não só entre não-fãs de "Evangelion", mas ainda mais entre fãs que consideram Shinji um dos personagens mais irritantes e “bunda-mole” de todos os animes. Mas talvez seja por isso que goste tanto do personagem e ache ele tão responsável pelo sucesso do anime, justamente porque ele é, em exata medida, demasiadamente humano. E é aí que entra a grandiosidade de Nitori, justamente porque ele se encontra tão próximo de Shinji exatamente neste aspecto, e também tão distante, como Shinji deveria estar, na maioria dos elogios que fazem ao protagonista de "Evangelion". Se Shinji e a série são colocados em um pedestal por sua melancolia e complexidade, certamente Nitori e "Hourou Musuko" não o são por isso. O fantástico e o belo que se encontram em ambas as animações e em ambos os personagens se alojam, na verdade, na altíssima verossimilhança dos personagens com a realidade, ou seja, por serem sensíveis, frágeis e principalmente, demasiadamente humanos. Complexos? Sim! Mas humanamente reais. Como todos nós...

"Hourou Musuko" de fato eleva o debate sobre homossexualismo, a transexualidade e as questões de gênero a outro patamar, sem caracterizar-se como propagandístico, ou exercendo somente esta função. Se me parece errôneo elevar o anime "Evangelion" ao máximo por sua complexidade e hermetismo, também me parece tolice elevar "Hourou Musuko" somente por sua temática audaciosa. "Hourou Musuko" vai muito além de um anime de temática gay. Não se deve perder de vista que, antes de ser um anime gay, "Hourou Musuko" é um drama, uma história de amor, um conflito existencial, um anime de questionamentos típicos de um adolescente, e muito mais. A animação, na verdade, realizou um dos maiores feitos: transformar um anime com uma temática complexa, contemporânea e de difícil abordagem numa obra-prima, sem, é claro, sê-lo por sua temática, mas pela forma com que trata dela. Com profundidade mas, mais ainda, com Humanidade.



PS: Se existiu um sintoma, ou uma espécie de sinal que me fez identificar que esta animação era uma obra-prima, poderia revelar, com certeza, que foi pela dificuldade de escrever esta resenha. Poucas vezes me senti tão desconfortável em comentar um anime como este. Parecia-me que, em nenhum momento, meus elogios e comentários chegariam aos pés da animação. Se tantas vezes repeti nesta resenha que este anime ia “muito além” de qualquer coisa, talvez seja porque ele vai muito além até mesmo de meus próprios elogios e, principalmente, de uma simples nota...

¹ Traduções ao pé da letra que tentam evidenciar justamente os dois trocadilhos possíveis no português. No caso de “Filho desviado”, talvez possa parecer ser de mau gosto mas, na minha opinião, ficaria muito interessante se assim fosse, provocando uma tensão entre um título vulgar com uma obra totalmente sutil e delicada. Ou também, talvez com uma tradução mais amena, “Filho desorientado”, poderia se relacionar a idéia de “Orientação sexual”. Outras possíveis traduções seriam “Filho perdido” ou “Filho sem rumo”.

² Interessante ressaltar que o anime Aoi Hana possui uma semelhança muito grande com Hourou Musuko não só no seu recorte temático. Mas pelos traços, pela trilha, pela edição, e em muitos outros aspectos. Ao que parece: Ou Shimura teve grande participação na produção de ambas as séries, ou a direção de Hourou Musuko optou por se assemelhar com Aoi Hana.


Vinícius Chamiço