Ano: 2015
Estudio: Sunrise
Diretor: Tatsuyuki Nagai
País: Japão
Episódios: 50
Duração: 24 min
Gênero: Mecha/Guerra/Sci-Fi/Drama
Se você gosta de animes, sem dúvida já pelo menos ouviu falar da série Gundam. Se iniciando em 1979, o “Mobile Suit Gundam” revolucionou o gênero mecha em uma época onde todas as obras envolvendo robôs gigantes eram infantis ou exageradas, envolvendo tais robôs como sendo seres falantes que derrotavam alienígenas invasores. O Gundam original ousou tentar criar um enredo onde os robôs gigantes eram apenas ferramentas de guerra, controladas por seres humanos envolvidos nestas guerras iniciadas devido a tensões políticas, algo muito mais realista e maduro do que se esperava.
Como você, leitor, já deve muito bem saber, isso deu tremendamente certo. Gundam se tornou uma das maiores franquias japonesas já vista, gerando continuações, spin-offs, filmes, jogos, mangás, livros e tudo mais ao que se tem direito. Depois de um tempo, virou uma prática comum a série se reinventar desenvolvendo obras que não se ligavam a timeline do Gundam original, mas sim em universos novos e auto-contidos, que por sua vez também geravam as próprias sequências e continuidades.
Iron-Blooded Orphans se encaixa nesse modelo, sendo a 14ª série de TV principal da franquia. Na época de seu lançamento, foi anunciado que teria a história planejada e o roteiro escrito por Mari Okada, mais conhecida por seu trabalho em melodramas romanticos como “AnoHana” e “Toradora!”, algo que plantou muitas dúvidas e ceticismo nos fãs. Mas, ao longo da série, isso se mostrou como um grande acerto que fez de IBO uma das séries Gundam mais humanas e intimistas até agora, mesmo que disso venha também a sua fatia generosa de falhas.
Em um futuro distante, ocorreu no mundo uma espécie de terceira guerra mundial chamada de “Guerra da Calamidade”, entre as colônias espaciais e o governo da Terra, que perdurou por muitos anos e causou inúmeras e traumáticas baixas para a população humana. Uma organização chamada Gjallarhorn surgiu nestes tempos caóticos e, com a liderança e visão de um homem chamado Agnika Kaieru, conseguiram conter a guerra e alcançar a paz. Depois disso, o mundo se re-dividiu nos chamados “blocos econômicos” e Gjallarhorn se tornou algo como uma “polícia mundial”, com sua autoridade quase suprema e poder militar absoluto sobre quase tudo e todos.
Trezentos anos depois, Marte é colonizada e já se torna o lar de muitos seres humanos. Contudo, Marte ainda depende do governo da Terra para sobreviver economicamente, gerando um cenário de extrema opressão e pobreza aos marcianos, terreno propício para todo o tipo de injustiça.
Na cidade de Chryse, uma garota nobre chamada Kudelia Aina Bernstein decide contratar a empresa de segurança privada Chryse Guard Security (CGS) para escoltá-la até a Terra, onde pretende negociar pela independência de Chryse e, quem sabe, do resto de Marte. O problema é que a CGS já é uma empresa podre por dentro, pois grande parte de seu contingente consiste de crianças e adolescentes órfãos que foram tirados das ruas para serem praticamente utilizados como mão-de-obra escrava.
Quando um oficial corrupto da Gjallarhorn ataca a CGS com o interesse de matar Kudelia e impedir qualquer movimento pela independência de Marte, os adultos da CGS mandam as crianças para a linha de frente, numa tentativa de escapar enquanto elas servem de distração. Neste meio-tempo, um dos jovens envolvidos, chamado Orga Itsuka, finalmente organiza uma rebelião interna contra os adultos e toma controle da CGS. Seu melhor amigo, Mikazuki Augus, é um exímio piloto de Mobile Suits capaz de controlar incrivelmente um dos mais recentes achados da CGS: Gundam Barbatos, um “Gundam frame” utilizado na Guerra da Calamidade.
Depois de repelirem com sucesso o ataque de Gjallarhorn, Orga e todos os outros órfãos decidem formar a sua própria empresa de mercenários, chamada “Tekkadan”. Seu primeiro trabalho: escoltar a princesa Kudelia Aina Bernstein até a terra. Mas isso não vai ser nada fácil, considerando que Gjallarhorn vai tentar impedi-los de todas as maneiras possíveis no meio do caminho.
Dividida em duas temporadas de 25 episódios cada, Gundam IBO conta a história destes jovens soldados que, através da Tekkadan, anseiam por uma vida melhor e um lugar ao qual pertençam. Apesar de conseguirem superar muitos obstáculos com sua determinação e força de vontade, sua ingenuidade logicamente os torna vulneráveis a toda a podridão e corrupção de interesses políticos que simplesmente não querem que essas crianças se tornem alguém na vida.
Muito é discutido em IBO: o que seria a verdadeira justiça, as origens da opressão que dão luz a organizações como Tekkadan, se os fins justificam os meios, o fardo de liderar e a busca por ideais para se sustentar uma vida, para citar alguns dos tópicos que permeiam não só esta série mas toda a franquia Gundam. Alguns destes questionamentos são muito bem trabalhados e culminam em momentos emocionais gratificantes. Outras, nem tanto.
O grande problema de IBO é o fato de que mais da metade de sua primeira temporada varia entre monótona e “apenas legal”. É simplesmente muito tempo gasto no “build-up” para o resto da história, onde quase nada de muito interesse acontece. Vemos a Tekkadan pular de lugar em lugar, encontrando “vilões da semana” para impedi-los de fazer uma viagem mais tranquila e direta até a Terra, tudo se passando majoritariamente dentro da nave da Tekkadan ou da imensidão escura e genérica do espaço. Não que isso seja de todo ruim, é claro. Durante esse tempo, vemos os arcos individuais de vários membros da Tekkadan sendo revelados, e eu diria que este é o grande forte da série. Quase todos os personagens que compõem essa organização de jovens revoltados recebe tempo suficiente de desenvolvimento para se tornarem carismáticos e fazer com que o espectador se importe com seus destinos e, assim como em toda série Gundam, eventuais mortes.
A coisa engrena de verdade, no entanto, quando eles finalmente chegam até a Terra. O drama, a carga emocional, tramóias políticas, o senso urgência e tudo o que está em jogo é quase que imediatamente amplificado tanto do lado da Tekkadan como por parte dos antagonistas da Gjallarhorn, e as coisas só melhoram da segunda temporada em diante.
A partir do último arco da primeira temporada, Gundam IBO tem uma clara preocupação em tentar sair do óbvio. Desde a dinâmica entre seus personagens até a maneira como as coisas acontecem na história em si, tudo é feito de maneira a subverter pelo menos um pouco dos clichês comumente utilizados neste tipo de gênero e na franquia Gundam em geral. Personagens que seriam obviamente os grandes vilões da história se mostram mais tarde como pseudo-aliados ou meramente antagonistas com os próprios motivos para se oporem aos “heróis”. Intrigas políticas levam a resultados mais realistas e instáveis e, quando tudo está dito e feito, vemos que as situações ideais raramente acontecem: tudo tem um preço, e cabe aos envolvidos decidirem se os resultados obtidos valeram a pena ou não. Isso não é uma história da incrível e orgulhosa rebelião dos oprimidos contra os opressores mas, sim, um olhar mais maduro e realista sobre os jogos de poder que permeiam as guerras e conflitos no mundo real.
E a todos que estavam temerosos pela direção que Mari Okada poderia dar à série, a roteirista prova que seu estilo mais intimista e melodramático cai como uma luva para a série Gundam. Relacionamentos amorosos ocorrem de maneira tão natural e carismática que é simplesmente difícil não desenvolver afeição pelos casais que se formam (salvo talvez em uma instância, mas isso seria um spoiler). Não só isso, como as relações de amizade, camaradagem, admiração e até de antagonismo entre os personagens de todos os lados do elenco são em sua grande maioria um ótimo estímulo para se importar com o que acontece com cada um deles. O único lado ruim disso é que, em alguns momentos, Okada acaba exagerando um pouco na dose e o melodrama passar a ficar desnecessariamente exagerado e piegas. Inclusive, existem até momentos onde o destino de alguns personagens é ridiculamente óbvio apenas pelas conversas e choradeiras (“vou fazer tal coisa depois da guerra” ou “preciso te contar uma coisa quando voltar da batalha” por exemplo).
Isso sem falar nos problemas estruturais do enredo em si. Como a primeira temporada gasta muito tempo construindo as bases para o que vem depois, o resto da história fica com uma sensação de estar indo a um passo mais apressado que o ideal, especialmente na segunda temporada. O grande antagonista da segunda temporada não é nem ao menos mencionado na primeira, alguns personagens novos aparecem apenas para morrerem logo em seu início e a maneira como a situação se escala em uma última batalha épica me pareceu pular alguns passos para que a série pudesse acabar logo, como se tivessem percebido que tinham pouco tempo para contar a história que queriam a essa altura do campeonato. Como resultado, certos detalhes importantes são simplesmente mal explorados ou ignorados no meio do caminho, especialmente em relação à história de fundo. Afinal de contas, quem exatamente foi Agnika Kaieru e o que fazia dele um líder nato e influente? Ele nem ao menos aparece durante a série toda. O que exatamente causou a Guerra da Calamidade e porque foi tão ruim? “Mobile Armor”, a suposta pior invenção em detrimento da Guerra da Calamidade, só apareceu em um arco e pronto? São coisas assim que criam certas pontas soltas que impedem o enredo de se mostrar mais coeso e no controle da história que quer contar.
Como já esperado da Sunrise e de uma produção Gundam, IBO possui um ótimo pacote visual. A animação é, no geral, muito bem feita e fluida, especialmente nas lutas espaciais onde os robôs gigantes se movem de maneira rápida e explosiva, com poucos momentos de queda na qualidade geral. O design de personagens altamente estilizado é um pouco estranho, a princípio, dando uma aura mais infantil ao visual, mas me vi surpreso quando percebi que não só havia me acostumado, como também aprendi a apreciar as aparências diferenciadas de cada personagem, com muita atenção aos detalhes de seus penteados, expressões faciais e afins. Ninguém tem a mesma cara e isso é sempre muito bem vindo. Só me decepcionei com o design dos mechas no geral. Não que eles sejam particularmente feios, mas até mesmo alguns dos Gundams tem aparências genéricas e esquecíveis.
A trilha sonora é outro ponto onde acertaram em cheio, com aberturas grudentas como “Raise Your Flag” (Men with a Mission), “Rage of Dust” (Spy-Air) e “Fighter” (KANA-BOON), isso sem falar nas músicas de fundo imediatamente reconhecíveis, capazes de amplicar qualquer momento de ação ou emoção.
No final das contas, Gundam: Iron-Blooded Orphans é um ótimo anime, apesar de suas falhas o impedirem de se elevar ao status de excelência. Os personagens são humanos e carismáticos, os conflitos políticos e suas resoluções muito realistas (tanto para o bem quanto para o mal) e sua clara preocupação em tentar escapar do óbvio fazem desta uma experiência no mínimo interessante de se ver. É só aguentar seu começo longo e mediano.
Lucas Funchal