Ano: 2013
Estudio: Bridget Folman Film Gang
Diretor: Ari Folman
País: França, Israel, Bélgica, Polônia, Luxemburgo, Alemanha
Episódios: 1
Duração: 123 min
Gênero: Drama, Ficção Científica
Em 2011 foi lançado o filme "O Artista". Nele é retratado a mudança completa do mercado cinematográfico americano com a chegada dos filmes com som, aniquilando todas as produções e seus artistas do cinema mudo. "O Artista" não discute o impacto comercial ou cultural desta mudança, mas as consequências para os artistas do cinema mudo que, além de perderem o emprego, perdem a sua identidade. Qual seria o conceito de identidade de um artista? O que faz com que ele continue sendo considerado um ator profissional quando ele não “vale” mais nada? O que fazer quando seu glorioso passado não tem mais forças para respaldar o seu presente? Resumidamente, será que existe alguma essência que, não apenas o defina como artista, mas também como uma pessoa? Até onde a essência humana faz diferença para definir um artista e vice-versa? A produção que resenharemos agora também aborda uma revolução na indústria de entretenimento, a diferença é que esta ainda não aconteceu… Ainda.
Produzido por Bridget Folman Film Gang, Entre Chien et Loup, Opus Film e Pandora Film, "O Congresso Futurista" é mais uma obra do cineasta Ari Folman, que ganhou renome mundial com o filme "Valsa com Bashir", e havia uma gigantesca expectativa pelo seu próximo trabalho, conseguindo desta vez um orçamento bem mais generoso para produzir sua obra, além da maior pressão em produzir algo superior ao anterior.
Aqui somos apresentados a Robin Wright, atriz norte-americana que interpreta a “si mesma”. Ela é uma grande atriz de Hollywood que, devido a várias decisões erradas e problemas pessoais, acabou tendo a sua promissora carreira arruinada e não consegue mais os holofotes da indústria para bons papéis. Seu empresário, então, tenta convencê-la a aderir a uma nova revolução que está acontecendo nos estúdios de cinema: a digitalização. Trata-se de um processo em que a parte física dos atores é totalmente mapeada por computador e, a partir daí, eles nunca mais precisarão atuar, pois todos os filmes passarão a ser produzidos por animação de computador utilizando seus “bonecos” digitais licenciados. Em compensação, ela NUNCA mais pode atuar em absolutamente mais nada, nem na festinha de crianças dos filhos ou da igreja do bairro, pois a “persona” dela agora é uma marca registrada do estúdio, e este detém todo os direitos sobre ela. É algo como acontece na indústria fonográfica, em que o artista produz a toda a música, mas a partir do momento em que ele assina com uma gravadora vendendo seu trabalho para ela lançá-lo no mercado, ela (músicas) passa a ser propriedade da gravadora, e toda vez que o artista quiser tocar suas “próprias músicas”, seja onde for, precisa da autorização da empresa e pagar royalties por cada uma delas pro resto da vida.
Essa ideia de digitalização de atores já foi explorada antes no cinema, mas de uma forma um pouco diferente… Quando a estreante japonesa Square Pictures lançou mundialmente o filme "Final Fantasy: The Spirits Within" em 2001, muitos atores americanos lançaram palavras de preocupação com a produção, pois devido ao alto nível de realismo para a época, houve a preocupação de que se esse tipo de filme fosse um sucesso comercial, a carreira dos atores “de carne e osso” estaria gravemente ameaçada num futuro próximo. No final das contas, Final Fantasy TSW acabou não conseguindo obter sucesso comercial e terminou por falir o estúdio em seu primeiro longa-metragem. Mesmo assim, Spirits Within acaba como que “jogando uma praga” para as gerações futuras, como um fantasma que, mesmo morto, ainda volta a assombrar, de que um dia os atores podem não ser mais necessários para a indústria.
Voltando ao filme "Congresso Futurista", este arco narrativo é filmado com atores e cenários reais. Robin não consegue se convencer de que aqueles bonecos digitais devem substituir o trabalho árduo de um ator, que eles não tem alma e que ela estaria totalmente alheia a tudo o que acontecer com sua “imagem”, que agora seria propriedade do estúdio. Porém, como a carreira dela está praticamente acabada, ela também precisa pensar em seus filhos e na sua própria sobrevivência daqui pra frente, já que essa revolução é um caminho sem volta.
Algo interessante também a se analisar é o estúdio fictício do filme, o Miramount. Trata-se da junção de nomes dos estúdios Miramax e Paramount. O primeiro, nos seus tempos de glória, era uma divisão do gigantesco conglomerado de mídia Disney e era dirigido pelos polêmicos irmãos Weinstein, que conseguiram a proeza de tornar filmes internacionais (os chamados “filmes com legenda”) e de nicho em algo comercial e rentável no mercado americano, acostumado apenas a “blockbusters” e produções locais, tendo um invejável acervo de grandes clássicos em sua videoteca; Já o segundo, o Paramount, é um dos mais antigos estúdios de cinema do mundo, com mais de 100 anos de existência e já foi uma das empresas mais poderosas do mercado cinematográfico global, chegando a ter problemas com órgãos regulatórios nos Estados Unidos da América que, na década de 40, obrigaram o estúdio a se desfazer da então maior rede de salas de cinema do país por alegações de monopólio, um evento que ficou conhecido como “United States vs. Paramount Pictures, Inc.”; A junção dessas duas companhias muito icônicas fica muito bem representada quanto ao poderio das grandes empresas de mídia na alegoria da Miramount. Não apenas Robin, mas todos parecem se sentir ameaçados ou diminuídos pelo gigantismo e poderio dela, em que ou Robin aceita as condições da empresa ou ela VAI mergulhar completamente no esquecimento para sempre.
Até aqui, já existe bastante assunto para se fazer um grande filme, certo? Certíssimo!!! Mas, isso tudo foi só a introdução… Senta que o filme realmente começa agora.
Passada a revolução digital e seu grande sucesso, uma nova onda está a surgir. Como o personagem de Robin é atualmente um dos grandes sucessos comerciais da Miramount, ela é convidada especialmente para estrear essa nova grande revolução que, segundo prometem, vai mudar completamente o conceito de entretenimento como nunca antes na história humana, chegando a quebrar padrões "psicofilosóficos" e culturais em qualquer parte do mundo. A partir de agora, as pessoas não vão apenas assistir ou ler seus personagens favoritos, elas poderão “vivenciá-los” literalmente por todo o tempo de suas vidas. E só para constar, esse importante evento acontecerá no glorioso Hotel Miramount, na cidade de Abrahama. Começa aqui uma nova revolução na indústria, a chamada Revolução Química.
A partir daqui, o filme passa ser totalmente produzido por animação. Saem os atores reais e entram suas versões cartunescas feitas a mão. O estilo e as técnicas utilizadas são inspiradas nas animações da década de 40 e 50, e são de altíssima qualidade. Muitos quadros de animação e cores por toda a parte até chegam a poluir um pouco a tela, mas não deixam de ser primorosos o tempo todo. Cenários e personagens, até mesmo coadjuvantes e figurantes, com uma riqueza incrível de detalhes. É divertido durante o filme você ficar tentando identificar quais personagens as pessoas ao fundo estão “vivenciando” enquanto o filme todo segue. Em alguns momentos, a tela fica tão poluída de elementos animados e coloridos que pode valer a pena pausar só para apreciar toda a riqueza de elementos e objetos na tela.
Tamanho esmero contou com a participação de vários estúdios de animação de várias partes do mundo, como o Studio352 em Luxemburgo, Walking the Dog da Bélgica, o Bitteschoen e o Studio Rakete na Alemanha, Studio Orange na Polónia e o Snipple nas Filipinas. Entretanto, a maior parte de todo o trabalho e finalização aconteceu no estúdio de Ari Folman em Israel.
A trilha sonora é espetacular. Feita por Max Richter, o mesmo que trabalhou em "Valsa com Bashir", mostra novamente todo o seu talento em criar canções primorosas, no tom correto e carregadas de emoção e sentimento. Muitos dos momentos marcantes são acompanhados da excelente música-tema orquestrada que consegue mergulhar o espectador nas cenas. O restante do som, tanto na versão dublada como original, também está muito bem feito.
Neste segundo arco narrativo, demarcado pela “revolta de Abrahama”, o filme começa a brincar com a mente do espectador até sua evolução para um pseudo 3° arco narrativo, em que a questão da “identidade” é levada mais a sério. O que diferencia as pessoas de si mesmas? O que realmente nos torna humanos? Se uma pessoa substituir a sua consciência pela “identidade” de um personagem isso ainda a torna humana? E minha identidade “real”? É realmente possível viver a identidade de outra pessoa e assim tornar isso o “real”? Até que ponto a fantasia e a realidade num cenário deste podem ser diferentes para quem está nela? Aonde fica o limite do saudável e do sonho? E o mais importante, até que ponto nós, hoje, já não estamos vivendo numa fantasia coletiva acreditando nossas vidas serem o real? Até onde o “caos” humanitário representado no filme está tão longe assim da nossa realidade tanto como sociedade mas como humanos? E se estivermos mergulhados nisso, será que conseguiríamos viver fora da ilusão? Quem seríamos nós fora desse mundo? Fora desses “portões dos sonhos” que estamos presos existe algo a se chamar de mundo? Será que alguém realmente quer sair ou é melhor mergulhar ainda mais?
Há uma crítica aqui também à indústria bioquímica, que hoje domina o mundo com remédios psicotrópicos e interfere na vida de bilhões de pessoas como nunca se viu antes, onde as grandes corporações farmacêuticas exercem um poder só antes conferido a indústrias seculares como as de petróleo e cigarros em tão pouco tempo.
"O Congresso Futurista" consegue levar todas essas questões muito bem e faz o espectador pensar e se questionar; O problema do filme, entretanto, está na edição. O Congresso Futurista é realmente muito longo, e cheio de diálogos repetitivos e expositivos, especialmente no seu primeiro arco. Quem não está acostumado à cadência dos filmes europeus vai se sentir entediado em vários momentos. É fácil perceber cenas inteiras que poderiam ser cortadas na edição sem que a história ficasse capenga. Entretanto, mesmo com esse persistente problema, a história consegue ser passada com a seriedade e comprometimento merecido.
O trabalho dos atores, sejam reais ou animados, é primoroso. Eles realmente se entregam aos papéis nos quais estão atuando. O que deixa aqui uma crítica meio indireta: para representar uma pessoa, nada substitui a sua essência. O real.
Infelizmente, devido ao seu ritmo por vezes arrastado, muitas pessoas podem acabar não gostando tanto assim de "Congresso Futurista" como foi em "Valsa com Bashir", mas quanto à sua mensagem, é inegável sua beleza e grandiosidade. Uma obra realmente primorosa que acerta o espectador e o faz refletir. Se você procura um filme destes, "Congresso Futurista" é absolutamente recomendado.
Emanuel Silva Sena