domingo, 18 de novembro de 2018

Kino no Tabi (TV)

Alternativos: Kino's Journey, Kino's Travels
Ano: 2003
Diretor: Ryutaro Nakamura
Estúdio: GENCO / A.C.G.T / Studio Wombat
País: Japão
Episódios: 13
Duração: 24 min
Gênero: Aventura / Drama



Kino no Tabi: uma viagem pela irracionalidade humana

Kino No Tabi é uma light novel (uma espécie de livro, romance curto, geralmente ilustrado no estilo mangá) de Keiichi Sigsawa. Publicada (escrita) em 2000, em 2003 ganhou a sua curta animação de apenas 13 episódios, a qual ficou conhecida como Kino’s Journey: the Beautiful World.

O animê conta a história de Kino, uma viajante, e Hermes, a sua moto falante. Sim, um veículo que entende o que dizemos e responde-nos. Excelente criação para quem viaja. Pouco sabemos da protagonista; tanto a moto quanto Kino falam pouco, muitas vezes a atenção é focada com quem elas interagem, mas, mesmo assim, a dupla consegue cativar tanto os personagens quanto o telespectador.

A menina Kino viaja, então, por vários países, que na verdade são pequenas cidades, algumas mais desenvolvidas, outras nem tanto. Por motivos pessoais (para não se apegar e deixar de viajar), ela não fica mais de três dias em cada país. Cada local possui uma característica e aqui entra o trunfo da obra: a cada estadia de Kino, mais do que os costumes do lugar, ela aprende e nós aprendemos sobre a irracionalidade humana.

Comentarei um pouco sobre o primeiro episódio, no qual Kino chega ao “País da dor aparente”. Título forte, episódio também. Ao entrar no lugar, a protagonista percebe que está tudo muito vazio, as cidades são cuidadas por robôs (isso é comum no universo de Kino), mas, humanos, “não há” nenhum.

Este fato por si só já nos traz um pensamento: até quando o ser humano será útil? Pior ainda: sem ser útil, precisará e continuará a existir? De qualquer forma, criando robôs superinteligentes para aumentar o seu tempo livre, o seu prazer, o homem cria, também, a sua ruína. (É possível lembrar do Aldous Huxley: o fim e o maior sofrimento da humanidade chegarão com a sua busca incessante pelo prazer).

No entanto, no “País da dor aparente”, os humanos não morreram ainda, só estão escondidos, cada um na sua casa, cada casa a metros e quilômetros de distância uma da outra. Por quê? Um dos moradores “nos” conta.

O homem narra a história daquele país: tratando-se de tecnologia, seu povo havia avançado muito, criando diversos tipos de robôs que faziam quase tudo para os humanos. Os cientistas inventaram, então, uma máquina líquida, em forma de água. A pessoa que a bebesse conseguiria ler os pensamentos do outro. Por que essa ideia? Para acabar com o sofrimento!

Diz-se que a maioria dos problemas ocorre porque não conseguimos sentir ou imaginar a situação que o outro está passando, além de nossa linguagem muitas vezes ser falha, não conseguir expressar o que pensamos (e isso está relacionado à filosofia do Ludwig Wittgenstein). Logo, se todos bebessem a máquina líquida, entender-se-iam sem falarem uma única palavra.

Passou-se o tempo e os problemas vieram: as pessoas nas ruas brigavam e se matavam, porque sabiam que tal indivíduo tinha ódio por elas, outro queria se vingar, ou estava mentindo etc. O país virou um caos, as pessoas separaram-se umas das outras a uma distância que não conseguiam ler os pensamentos do outro nem terem os seus lidos. Os robôs cuidaram da cidade.

Embora seja uma ficção, além das reflexões já comentadas aqui, pode-se pensar no quão o episódio é atual ao pensar em nossa sociedade virtual, na internet, no Facebook ou em outras redes, nas quais ao primeiro sinal de discordância de ideias, pode-se bloquear o outro. Ou, antes disso, antes de adicionar alguém à sua lista de amigos, pode-se ver as páginas que ele(a) curtiu, as bandas que gosta, os livros que lê etc., e, dependendo do seu gosto, pode evitar (ou não) o convívio com tal pessoa. É quase como ler os pensamentos do outro, evitando o contato, evitando o futuro.

Esse é apenas um dos episódios e esses são apenas alguns pontos comentados, pois, os diálogos são quase todos profundos e poéticos. Kino passa por diversos países e situações, que até podem parecer estranhas demais, mas na verdade são sublimes representações de nossa irracionalidade.

Dentre essas situações, há, por exemplo, o “País dos Adultos”, onde as crianças passam por uma operação para fazerem os seus trabalhos sem reclamar, sempre sorrindo, aceitando o seu “destino”; para esses cidadãos, isso é ser adulto. Isto é, os adultos são aqueles que renunciam à razão e às suas vontades. Há também o país no qual o trabalho foi abolido, deixado para os robôs, mas os humanos, por não terem o que fazer, trabalham gratuitamente, apenas para passarem o tempo e estressarem-se propositalmente: a paz pode trazer o tédio que, por sua vez, traz sofrimento (filosofia schopenhaueriana).

Há outras críticas no animê, feitas aos sistemas políticos, às religiões, às atitudes humanas, às guerras, ao trabalho sem sentido etc., além de diversas reflexões, sobre escolhas, sobre tradições, sobre a tênue linha entre a subjetividade da criação imaginária, a ficção dos livros, e a realidade objetiva do mundo, suas semelhanças e diferenças, como uma interfere e ajuda a outra; enfim, inúmeras questões (não respostas!) em tão pouco tempo de obra.

É por essas e outras que o animê Kino no Tabi é indicado. Desconhecido, curto, porém profundo. A animação conta com 13 episódios, um OVA e dois curtos filmes (de meia hora). Os gráficos/traços podem não ser de primeira qualidade, a trilha sonora pode não ser memorável (embora cumpra muito bem a sua função), mas o conteúdo o é. Outro fator positivo é que a animação não cai no clichê maniqueísta do bem x mal. São situações, contextos e pessoas diferentes; são múltiplos ângulos de nossos atos e de nossa sociedade. "Beautiful World" pode ser uma ironia, depende de que lado olharmos (como diz o brasileiro Leonardo Boff: “Todo ponto de vista é a vista de um ponto”).



Viajemos pela viagem de Kino, pelos países e pelos dilemas que a envolvem, que envolvem os personagens, que nos envolvem e nos devolvem um pouco da razão.


(P.S.: Queria comentar sobre vários momentos de todos os episódios, porque são ricos demais, mas só de fazer este texto já doeu em mim. Duas dores: a de ficar contando parte do enredo e a de ter evitado contar mais... Sinto como se não tivesse dito nada... Caso queira ler uma análise mais detalhada, porém com alguns spoilers, leia-a no meu blog, onde o texto foi originalmente publicado: https://palavrasaleatorias09.blogspot.com/2017/01/kino-no-tabi-uma-viagem-pela.html)


Carlos Siqueira