Alternativos: The Beast Claw
Ano: 2006
Diretor: Masaaki Yuasa
Estúdio: Madhouse
País: Japão
Episódios: 13
Duração: 23 min
Gênero: Ação / Romance / Terror
Abro esta resenha com o seguinte questionamento: seria possível, em uma só obra, coligar samurais, bestas sobrenaturais disfarçadas de belas mulheres, mafiosos mutantes, mechas elaboradas com tecnologia de ponta, empresários, cientistas, um gigante e um macaco expert em artes marciais? Se estes elementos lhe parecem absurdos demais para estarem mesclados em uma única série, então tenha certeza que a premissa de Kemonozume é efetivamente esta: compilar boa parte do imaginário temático nipônico em 13 episódios com o intuito de levar o selo de garantia do nonsense até as últimas conseqüências, propondo com esta lógica uma inconfundível marca de originalidade.
Dirigido por Masaaki Yuasa e levado a cabo pelo estúdio Madhouse, Kemonozume, logo nos primeiros momentos, já apresenta uma narrativa digna dos contos de Lewis Carroll. Desde os tempos mais remotos, uma raça de bestas fantásticas denominadas Shokujinkis caminha pela Terra trazendo destruição à raça humana. Para fazer frente a esta tremenda ameaça, os humanos começaram a aperfeiçoar suas habilidades com a espada, desenvolvendo a secreta arte do Kifuuken, estilo de luta que consegue, através de técnicas extremamente sofisticadas, decepar as garras destes monstros – que são sua fonte de energia vital. O Kifuuken sagrou-se vitorioso em diversas caçadas à Shokunjinkis, passando de geração em geração suas táticas de luta aos herdeiros do clã, numa tradição memorável que atravessa os tempos feudais até o atual Japão Contemporâneo. E é este o pano de fundo no qual se engendrará a trama principal desta história.
Juzo Momota é o atual mestre do dojô. Em uma época na qual os vilarejos se tornaram metrópoles e o Japão agrário caminhou rumo ao progresso tecnológico, uma escola tal qual o Kifuuken enfrenta uma série de problemas, como o obscurecimento e a falta de membros na escola – em parte devido à conservação de suas raízes arcaicas distanciadas da modernidade vivenciada pelos jovens - e um aumento exponencial de Shokujinkis para um efetivo de caçadores cada vez mais insuficiente e desinteressado. Se isto já não fosse deveras problemático, o número de calouros promissores reduz drasticamente e as bestas vêm se tornando cada vez mais sofisticadas em suas matanças, desenvolvendo até mesmo a capacidade de se misturar entre os humanos – transmutando-se muitas vezes em belíssimas mulheres. E a cereja no topo deste indigesto bolo é uma encruzilhada paradoxal, quiçá apocalíptica, para Juzo: decidir o herdeiro do clã entre seus dois filhos - o poderoso, mas inexperiente Toshihiko, e o yuppie ganancioso Kazuma.
Kazuma, através das Indústrias Momota (fundada por um grupo de anciãos do Kifuuken), vem empurrando uma gama de aparatos tecnológicos goela abaixo dos preceitos conservadores do dojô - para o total contragosto de Juzo - porém, Toshihiko, embora possua uma força e técnica espantosa, estranhamente fica atônito em boa parte de seus confrontos com Shokujinkis, não tendo a bravura necessária para desferir o golpe mortal. Se ao nível individual Juzo já se encontrava numa trilha sem destino, imaginem como as coisas ficariam piores se ele fosse assassinado por um Shokujinki sem ter apontado o sucessor? E, pior ainda: e se um de seus filhos se apaixonasse por um destes demônios?
Complexo, não? Pois é, o caos de onde parte Kemonozume não é suportável para qualquer espectador. Se as vias que costumeiramente Masaaki Yuasa toma são genuinamente distorcidas e absurdas, no caso desta série, o traçado é o distinto: se lançando numa realidade bem mais verossímil (por mais incoerente que pareça esta minha afirmação), mas à beira do colapso, o diretor desbrava tortuosas possibilidades, que, a cada episódio, impulsionam inevitavelmente a membrana restante de sanidade e equilíbrio para a mais profunda e doentia desordem (sua marca registrada). Histórias paralelas vão se aglomerando ao submundo de mafiosos mais temíveis que os próprios Shokujinkis, e interesses escusos se somam a um passado desfigurado por feridas ainda escancaradas. Para tal empreitada, sangue, mutilações, ecchi e até pitadas de ero-guro compõem um quadro que é esfacelado e adensado a cada capítulo, se dinamitando de vez nas últimas imagens, que se tornam categoricamente inimagináveis e delirantes (digno do melhor de um universo niilista).
Mas assistir Kemonozume não é uma experiência incrivelmente insana em decorrência unicamente de seu enredo atormentado e complexo. As ficções criadas por Masaaki não seriam nada sem um character design, um visual e uma trilha sonora tão extravagante quanto suas premissas. Entre os tocantes cenários exuberantemente coloridos, os traços fluídos e rabiscados dos personagens, as cores quentes - distribuídas heterogenicamente no anime – e os instrumentais de piano e saxofone que embalam as cenas, se instalam a energética trilha de abertura (Over Blue, de Katteni Shiyagare) e a insossa trilha de encerramento (Suki, de Santara), configurando uma inconfundível e original animação (tal qual um Kaiba, Cat Soup ou Mind Game).
E é a originalidade o ponto mais forte desta obra. Kemonozume, sem exageros, é um oxigênio para os engessados trabalhos do mainstream comercial nipônico - que se nutre de histórias sobre samurais cada vez mais estúpidas, com o pretexto único de lucro máximo. Cada início de episódio introduz uma micro-narrativa que abre as portas para o mundo novo que será arquitetado e demolido ao final de 23 minutos. Neste quesito, destaque para capítulos como o que trata de membros que abandonam o Kifuuken se apaixonando por Shokujinkis (as bestas que eles deveriam caçar, mas, que oferecem um mundo de afetos muito mais vívido que a dura e rígida disciplina do dojô). Questões como confiança, poder, soberba, luxúria e cobiça, são problematizadas de uma maneira incrivelmente plausível, e, as distinções entre mal e bem são descoloridas ao ponto de não mais ser possível identificar os reais antagonistas da trama.
Mas é precisamente no espessamento da trama, ponto honorável de Kemonozume, que desponta também sua mais temível falha: se a descontinuidade e o desenvolvimento ad absurdum são as bandeiras do anime, onde seria possível cimentar uma cadeia ligada a um final minimamente lógico? Longe do ideal metafórico de um Paranoia Agent, por exemplo, Kemonozume atinge o abismo da desordem total exatamente no momento em que perde o ínfimo de equilíbrio requerido - o pior momento possível. Quando a fina camada de coerência sustentada pela série se fragmenta por completo, o abuso de um nonsense aplicado de um modo incongruente não se torna um recurso estilístico aceitável. Kemonozume azeda aos moldes de um Kurozuka, mas, diferentemente deste, oferece, até o limite de sua saúde mental, uma via altamente rica e inexplorada para autores que estejam dispostos a correr o risco de se aventurar, e, quem sabe, encontrar predicados tão preciosos quanto os presentes aqui.
Thales Vilela Lelo