Ano: 2018
Diretor: You Moriyama
Estúdio: TMS Entertainment
País: Japão
Episódios: 13
Duração: 24 min
Gênero: Drama / Sci-Fi / Esporte
Ashita no Joe é um mangá clássico. Daqueles que a gente sempre ouve falar ao pesquisar sobre a história da mídia. Seu impacto foi enorme. Em meio em revoltas de estudantes e trabalhadores surge uma obra sobre um jovem delinquente tido como sem futuro e como apesar de todas as dificuldades ele começa a se destacar em um esporte (Ashita no Joe = Joe do Amanhã). Ele capturou o zeitgeist e se tornou um destes símbolos nos quais as pessoas se inspiram. A morte de um dos personagens causou tanta comoção que fizeram um velório de verdade para ele, um “causo” bem famoso.
E eu nunca li o mangá, nem assisti ao anime clássico. E quando comecei a assistir Megalo Box, eu sequer sabia que o anime era uma comemoração dos 50 anos de Ashita no Joe. Então fica aí minha confissão e meu pedigree. Não posso analisar Megalo Box como comemoração nem como adaptação. Posso analisar Megalo Box apenas como algo completo em si.
O protagonista com seu afro parece ter saído de algum anime do Shinichiro Watanabe, como Cowboy Bebop ou Samurai Champloo. Ele mora em uma favela, e não tem sua história nem seu nome verdadeiro revelados. Ele escolhe o nome Joe ao ver um "billboard" com uma propaganda de moradias na parte rica da cidade escrito “not for your average Joe”, ou “não é para um Zé Ninguém” em uma adaptação livre. Ele é chamado de Junk Dog (cão vira-lata) e a única característica que tem é sua dedicação quase suicida para o boxe.
O antagonista é um rival chamado Yuri. Campeão do torneio Megalonia, ele é reconhecido como o maior boxeador vivo e derrota Joe com facilidade (e só aceita enfrentá-lo novamente se Joe conseguir chegar na final do Megalo Box). Possui um gear avançadíssimo, produzido pela empresa Shirato, e é o garoto propaganda da empresa. Eles não são inimigos, mas rivais, reconhecendo um no outro algo que não reconhecem nas pessoas com quem convivem.
Joe é treinado por Gansaku Nanbu, que tem envolvimento com a máfia e participa de um sistema de lutas compradas. Junto a eles está o garoto Sachio, uma criança viciada em drogas e com talento para maquinários.
O boxe começou a ganhar mais destaque quando introduziram gears – maquinários que dão mais força aos socos, permitem uma defesa melhor e tornam as lutas mais letais e emocionantes. O torneio Megalomania foi instituído e é um gigantesco evento de apostas e prestígio. O mundo é uma merda cheia de desigualdades sociais, uma zona industrializada e luxuosa cercada por um deserto de miséria. Joe, por ser pobre, não é sequer considerado um cidadão e não pode competir no Megalomania. Ele e Nanbu arriscam tudo vendendo a alma ao diabo para terem uma chance de mostrar que existem e do que são capazes.
Eu estou tendo um problema sério para não lidar com spoilers aqui, já que o anime é bem curtinho e fechadinho, com apenas 13 episódios. O primeiro episódio é muito bom, um dos melhores primeiros episódios de anime que consigo me lembrar, e mostra muito bem o tom da série. Inclusive os minutos gastos lendo esta resenha seriam muito mais bem gastos assistindo ao primeiro episódio. Vou comentar apenas de coisas que acontecem até o terceiro episódio, e comentar sobre alguns temas por alto.
Embora o trailer seja ótimo, ele é feito para enganar. Joe não usa aquela gear no torneio. Ele luta sem. É um jeito muito claro de esfregar na cara de quem assiste que está tudo contra ele. É um Zé Ninguém contra um mundo que não gosta dele, não quer que ele faça parte dele, e que vai tentar quebrá-lo sempre que puder. Ele está sempre em desvantagem, sempre no seu limite, não tem tempo de descanso nem de se recuperar. Um vira-lata sobrevivendo do que consegue, mas tentando ir além.
E é um anime sobre o boxe, não sobre salvar o mundo. Joe tem uma força de vontade enorme, mas ele é insignificante frente à realidade que ele vive. Não existe um jeito mágico de consertar o mundo, de reverter o domínio do governo e das corporações. Mas Joe se torna um símbolo no mundo em que ele vive. Assim como o Joe do mangá original virou um símbolo no nosso mundo.
E Joe encontra mais pessoas como ele. São sete lutas até a final do Megalomania. Eu fiz uns três anos de kickboxing, e ver as poses de boxe sendo representadas é uma delícia. Mas é tudo muito mais sobre o que acontece antes de entrar no ringue do que sobre a luta em si. Há lutas rápidas e lutas demoradas, lutas muito pessoais (a melhor luta do anime para mim é contra o Aragaki) e lutas incrivelmente impessoais. Megalo Box dura exatamente o que tem que durar, algo que é cada vez mais uma qualidade (e um luxo) na indústria de animação japonesa. E embora eu não possa falar sobre a última (por mais que eu queira), ela tem um peso gigantesco.
Acho que faltam só dois pontos interessantes que gostaria de comentar: a arte visual e a música. Megalo Box homenageia animes antigos. Ao ponto de fazerem downgrading na resolução para deixar tudo meio embaçado e sujo, lembrando de uma época onde o computador era menos usado e alta-definição era um sonho, não um padrão. Assim como o anime original de Kino no Tabi, a impressão visual é de que quem assiste não está vendo algo atual, mas sim que descobriu uma pérola antiga de que nunca tinha ouvido falar. Ele me passa a impressão de homenagear em específico animes do final dos anos 90 e começo dos anos 2000, como Cowboy Bebop, mas me falta embasamento para dizer o porquê. Garanto que é uma impressão forte. Eu poderia citar o afro de Joe, ou o próprio traço e character design. Mas não é uma homenagem fácil e simples, como a cópia de um ou outro elemento. É mais como se Megalo Box fosse construído sobre a base que estes animes deixaram.
E sobre a parte musical, o contrário acontece. Megalo Box não tenta pegar algo mais antigo, mas sim abraçar o novo. Ele não é feito sobre rock ou música eletrônica, mas sobre hip hop. E a música é tão integral à experiência quanto jazz é integral a "Sakamichi no Apollon", ou música clássica a "Your Lies in April". Aquele ar sujo, honesto e improvisado está grudado em tudo que foi criado nesta obra.
Eu acompanhei Megalo Box durante seu lançamento. Eu não esperava para ver quando tivesse tempo – eu assistia ao vivo. Contava os minutos para cada episódio. Era o evento da semana. Megalo Box matou uma saudade que nem eu sabia que tinha. De animes que olham o vazio do mundo e mostram que há gente lutando, que há gente existindo. O anime não perde o fôlego do primeiro ao último episódio. Recomendo a quem está enjoado de shonens tradicionais, que parou de ver animes ou que simplesmente quer ver algo direto, simples e muito potente.
Heider Carlos